quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Trocando em miúdos - por Guaracy Muniz Carioca


Tomei uma dose de bitter para adoçar a boca pela manhã. O sol, o vento de agosto, correndo pelas árvores, um mês atrasado. Sibipirunas e Jacarandás em pleno florescimento e o mato ainda se recuperando da seca prolongada. Volto minha mente para o passado.
O adolescente ainda criança pegava ônibus e não entendia muito bem porque as janelas iam se ocupando primeiro da frente para trás, na época em que se saltava pela frente dos ônibus e ainda havia os trocadores para o motorista se concentrar no seu trabalho de dirigir. Eu gostava de me sentar na frente, onde podia ter a sensação de estar dirigindo também. Mas Antônio não. Antônio sentava atrás, no banco alto que fica sobre as rodas traseiras e observava. Negros, pessoas mal vestidas e pessoas obesas eram as últimas a ganharem seus pares. Homens sentavam-se ao lado de outros homens e mulheres sentavam-se ao lado de mulheres. Às vezes uma mulher branca ficava de pé se um homem negro estivesse sentado na janela. O último lugar vazio era sempre visto com estranheza. Poderia estar sujo, molhado ou ser alguma armadilha. Um lugar vago na janela por detrás dos bancos altos da frente era um ‘Siege Perilous’, onde mulher recatada nenhuma que não estivesse morrendo de dores nas pernas sentaria caso houvesse um homem sentado ali ao lado. Em quase vinte anos pouca coisa mudou. Somos preconceituosos o tempo todo. Até os cães sofrem com isso; um pit-bull é um cachorro assassino, um cão branco, pequeno, filhote e saudável tem muito mais chances de ser adotado que um cão grande, preto, doente ou mais velho. E eu olho minhas crianças e elas correm e rolam e brincam e brigam e são todas muito parecidas nessa ansiedade de querer viver plenamente.
Outro dia o trocador não tinha troco pra ninguém, faltavam-lhe moedas de dez centavos. E quem iria discutir por causa de dez centavos num ônibus lotado, cheio e quente?  Era injusto e desonesto, mas era uma briga que ninguém queria comprar. Nem Antônio. Um par de dias o mesmo episódio aconteceu, no mesmo horário e na mesma linha. Antônio querendo ajudar pegou seu pote de moedas e contou todas as de dez centavos. Havia quase dez Reais em moedas, era pesado. Levou separado numa sacola todo aquele metal. Entrou no mesmo ônibus, no mesmo horário e entregou ao trocador.
-Tem dez Reais aí em moedas. Pode contar.
Meio desconfiado o trocador esperou o ônibus subir na ponte Rio-Niterói e foi contando moeda por moeda. Estava certo. Deu a nota de dez Reais a Antônio, não agradeceu. Por mais preguiça ou dificuldade que ele tivesse aqueles dez centavos durariam por pelo menos uma semana. Ao final do expediente, voltando pra casa, Antônio calhou de pegar o mesmo ônibus. O mesmo trocador. Não tinha dez centavos de troco. Nem se lembrou do rosto de Antônio. Não era falta de troco. Era falta de honestidade mesmo.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Oficina - Por Nilzanira Reyes

oficina

o corpo brilha. pedra de luz
no palco dos amantes
ou é o fogo do desejo que aflora?

atrás da cena na busca disfarçada
um vulto procura cobiçante
o anjo sobre o qual repousa
a fome e o fogo que o devora

a luz se acende fecha-se a cortina

aplausos

um corpo nu repousa exausto
envolto numa nuvem de espuma

aplausos

se volta para o publico
e espreguiça






Cópia do Autor - Por Nilzanira Reyes


cópia do autor

o passado é uma paisagem em ruínas
visto de um barco à deriva.
sem o cais, sem as marcas das marés,
o risco são as lembranças.

o tempo demoliu as paredes e as janelas
contou as histórias que se perderam no pó
acumulado nos umbrais desnudos.
quanto riso e gritos de crianças ecoaram nos corredores embolorados.
quantos morreram de amor no abafado das alcovas.

esse mar de lenhos e calhaus
onde os homens buscavam  sustentação.

esse mar de ondas e milagres resistiu ao tempo
e mais homens nasceram e peixes se multiplicaram.

o passado estava ali, obscuro
na paisagem das ruínas,
como um fio condutor,
entre a incógnita e o ponto de vista a partir do barco.

Pequenas Histórias (para gente grande) - Por Nilzanira Reyes


Pequenas Histórias 
(para gente grande) 

Primeira 

Escrever, escrever...
A raiva potencializa e solidifica os sentimentos.
Exacerba a criação.
Dualidade – como amar o que faz sofrer?
Fazer um poema, falar do desejo.
Uma angústia enorme que abraça.

Um poema fala

"Poema de Roberto Juarroz

Existe um tempo do olho
que pára de olhar para trás ou para frente
e se detém em si mesmo.
E existe um tempo do tempo, 
do encontro do tempo com o tempo,
um transcorrer já sem testemunhos, 
uma duração duração.

O ponto é o resumo.
É necessário vigiar o ponto.
Sobretudo este ponto final.
Ou talvez o próximo."

A caminhada de quinta-feira se arrasta entre o tanto que falta e o que já foi percorrido.
Não era definitivamente aquilo que deveria ser tratado naquele tempo.
O impacto do tênis reverbera no solo concreto da verdade.
Andar, correr, cair. Assim, nesse compasso; uma auto compaixão sem testemunho. 
Mas o desejo se mostra maior do que a capacidade de dar um passo de cada vez e o que havia sido um rio transbordou e avançou pela estrada aberta e transformou em nado o que era caminhada. 
Detalhe, não saber nadar é afogar nessa enchente de emoção. 

" É necessário vigiar o ponto.".

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Luhli - por Vitor Ferreira


Lobisomem prisunha, fixa a terra que te sustenta. 

Batida do adufe, que chama o Borí

Sorriso q’embala o sonho harmônico.   

A força do seu pulsar reboam três alturas.

Em espiral de vida, reencontramos em nossa eni.



Lente bifocal do amor,

A comunhão de almas se faz,

Em mergulho indígena,

Caminho de luz e paz.



Lógùn Ede chama seu pai.

Partiu a mais linda estrela,

Com seu carismático sorriso.

O colossal bólido ruivo se agiganta.

Lá vai rodar a baiana, enquanto

Dentro de mim encanta.



                                                                                                                                                                    

                                

                                                                     

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Caa-apoam - por Vitor Ferreira


 N.A. Esse texto foi escrito pelo autor em viagem de volta ao Rio, de Belo Horizonte, após visitar Inhotim, próximo a Brumadinho, anos antes da tragédia; em uma crítica ao processo exploratório do minério de ferro e da demanda imposta pela economia vigente.  


Os portugueses saltaram

As serras paulistas e fluminenses

E assaltaram as serras mineiras.



Os portugueses contornaram

As serras paulistas e fluminenses

E estupraram as serras mineiras.



O relevo mineiro fala, em claro e bom tom,

Das lembranças de Von Martius e Spix,

Pelo cerrado retorcido,

Se encaixando nas vertentes do passado.



Suas grotas, vulvas a mostra,

Seduzindo o explorador sedento

Por ganâncias plúmbeo-rubras, em contraste,

Revelando o paraíso geológico.



Das entranhas de vulcano,

O fogo prometido amalgama o tráfego.

Cápsulas veiculares emergem do fluido incandescente,

Que em fila colidem contra minhas retinas.



É o aço dominador da fria economia,

Que determina o denominador comum

Das ditas duras egocêntricas.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

MORTALHA - por Katia Toledo



                                                            MORTALHA

O corte profundo sangra-me a alma.
Goteja-me lentamente o líquido rubro.
Agoniza nitidamente minha calma.
Meu corpo nu com teu manto cubro.


Forma-se uma crosta espessa e dura
a proteger-me como carapaça.
Imagino eu que, a essa altura
nem mal, nem bem por ela passa.


Tua estupidez trava uma batalha
com teu bem-querer que nunca escutas.
Deita em nosso amor uma mortalha,
fazes tuas verdades absolutas!











terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

TANGO - por Clayton Craveiro


Minhas pernas urgentes
e sem direção
pela calçada de pedras alvinegras
banhadas pelo rubro do meu sangue mental
cambaleiam em fúria morta
dessa maldita esquina torta
em que se meteu meu coração.

O tango que não se dança
O passo que não faço
Meu traço
Minha tragédia
em movimento
Descompassado no passo
No desenho do braço,
a dança.

A dança.   

Tatuagem bordada na pele
Trançada no bíceps
A síntese da minha dor
Meu tango
Meu...






Fragmento do Livro "Erogenia"

Orlando Arte - por Francisco José dos Santos

Orlando Arte

Descortinar novos sonhos
Em artes com novas matérias
Apagando o que ficou tristonho
Não levar a vida tão a sério
Solta a mente, imagina a ação
Flutua o pensamento liberto
Campeia por outra dimensão

Ao amigo Orlando DaSilva, gravurista, pintor e escritor.
Uma mente livre atuante que agora faz arte em novos cantos!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O sentido da vida - por Clayton Craveiro

N.A.: O texto abaixo foi escrito faz um tempo (um ano, acho), para meu blog. 
Tinham alguns endereços.
Achei que valia a pena republicá-lo
Na real, tudo vale a pena e a asa...


Meu filho, em suas elucubrações (vai procurar no Google que eu espero) filosóficas, afirmou que roubaram o sentido da vida. Não sei se sei. 
Sei lá se tudo ou nada make sense, gente boa! O fato é que vou por aí. Ir por aí faz sentido. Ficar parado não.

Tem uma galera que acha que sentido da vida faz parte de algum tipo de projeção divina. Eu não. Tudo bem, cada um na sua.
Tem outra que correr atrás da grana - é, aquela que ergue é destrói coisas belas (valeu Caetano) é o que interessa. Também tudo bem, boa sorte, se quiser dividir me chama.
Outros ainda,  que noites ou dias com um bocado de sangue correndo no seu álcool faz parte do compartilhamento de alegrias com amigos, paixões (sejam elas quais forem), e que isso é o que faz sentido.

Alguns pensam demais, outros de menos, mas o sentido, creio, é para ser sentido, se é que entendem o  meu sentido, minhas percepções, parágrafos, vírgulas e etecéteras,...

Eu, quando tinha a idade da minha prole, pegava o 433 e ia na orla olhar o mar, descalço, só de short, com o dinheiro da volta e do pão doce da padaria da Ataúfo de Paiva. Depois de jacarés mal pegados, ficava um tempão olhando para as Cagarras (vai procurar no Google que eu espero), projetando um futuro que aconteceu só em parte. Mas e daí? O sol era quente, o vento era bom e as bundas eram lindas. "Ah, tinha que ter a objetização da mulher!". Tinha. Era hormonal - sem culpa !

Hoje um abraço apertado, uma graça por besteiras, um bom sexo, uns dias de sol, outros de chuva, o cheiro da pizza assando, um obrigado, aprender coisas novas, ensinar coisas velhas, ouvir aquela música nova, ou aquela música velha, perfume bom no ar,  café no bule, o riso quando vier, o choro que não se deve evitar, matar saudades de algo ou alguém, um cigarro para quem fuma - mas faz mal, tudo aos poucos ou ao mesmo tempo, recuperam, trazem e fazem todo o sentido.

Então, malandragem, pare de pensar se roubaram ou não o sentido da vida e vai procurar seus instantes de liberdade, de graça, prazer, descompromisso, que a cada dia você vai perceber que as pequenas coisas que você acha triviais podem te dar o sentido que você acha que roubaram por não achá-lo na frente de uma tela. Não adianta procurar no Google.